Muitas vezes, quando ouvia alguém dizer que “Fulano de tal” estava fazendo um filme ou que “Beltrano” era um ótimo cineasta, sem nunca ter tocado numa câmera de 35 milímetros eu me sentia provocado. Talvez por estar fazendo parte de uma transformação de mídias e linguagens audiovisuais completamente contemporâneas que tornaram possíveis pequenas produções saírem do papel. Dessa forma, o fator “cineasta” foi popularizado pelo próprio fator “videasta” ou popularmente chamado de “videomaker”.
Todos nós somos um pouco “cineastas” ou “videomakers”, não somente pela facilidade em parar numa lojinha de produtos de procedência duvidosa e comprar uma câmera “handycam” ou simplesmente ligar e pedir uma tekpixs e sair por ai apertando o “play”. Essa interferência de espaços entre cinema e vídeo acontece há algum tempo. Filmes como “A bruxa de Blair”, são exemplos de filmes, mesmo sendo gravados com uma câmera de vídeo. Já aqueles que fazem vídeo, sabem que estão fazendo vídeo, mas tem uma referência muito grande baseada no cinema e tentam passar isso para a coitada da “handycam” que não tem culpa nenhuma disso.
Hoje, essa mistura de vídeo e cinema é dominante, assim como sua dupla potencialização. O vídeo aparecendo como potencializador do cinema e vice-versa.
Podemos destacar cineastas que mesmo fazendo cinema já trabalhavam com os princípios da não-linearidade, da colagem, do “direto”, características da video-arte e da linguagem do vídeo que são usados nos filmes. Jean-Luc Godard com os procedimentos do cinema direto já traziam algumas dessas questões. Há sim uma transferência da estética e de linguagem, levando para o cinema as experimentações consolidadas no vídeo e vice-versa.
O documentário foi uma vertente transformada e renovada pelo vídeo, ainda herança do cinema novo no mundo todo. A captação simultânea do registro do momento e sua enunciação, que vai caracterizar e definir a própria linguagem da televisão e do vídeo. O cinema já tinha descoberto a fluidez do real e do instantâneo, explorando a duração por meio do plano-sequência, mas nada comparada ao gesto da câmera de vídeo e do olho livre que explora o espaço. Coisas que não se podia pensar em fazer com uma câmera obesa como a de 35 mm foi possível com o vídeo, também, pela sua praticidade e pelo menor preço. Assim o vídeo passou a ser considerado como rascunho e “bloco de anotações” por alguns teóricos.
A câmera de vídeo, trouxe a presença do “ao vivo” sem interrupção ao fazer coincidir o real e sua encenação. Assim a câmera se tornaria uma personagem, real e com vontade imediata. Só com o vídeo foi possível que a câmera passasse de mão em mão por um documentário, exemplo disso é o documentário “O prisioneiro da grade de ferro” de Paulo Sacramento que retrata a vida atrás das grades. Nesse documentário a câmera fica literalmente atrás das grades nas mãos dos presos, coisa que era impossível com uma câmera de cinema.
Antes mesmo de pensarmos nas “Handycams”, as câmeras de cinema portáteis em 16mm e as o super-8 já prometiam renovar ao fazer florescer o cinema de intervenção, o documentário, o cinema militante, de “câmera na mão” e o corpo-a-corpo com o real. Por tanto, hoje essa interação de cinema e vídeo não me provoca no sentido de tentar definir ou distinguir cinema e vídeo, mas sim entender os dois e misturá-los sem qualquer comprometimento teórico.
Só depois de muito tempo fui me perguntar se essa marginalidade do vídeo como estética ainda existia. Ou será que essa marginalidade do vídeo foi glamourizada pelos bilhões de dólares que a sétima arte arrecada? Será que o vídeo será glamourizado com todas novas tecnologias e melhorias na definição de suas imagens? Será que daqui há algum tempo iremos todos fazer cinema, simplesmente por termos uma definição comparada à película?
Não podemos nem prever essas possibilidades, e nem mesmo podemos reduzir a linguagem de vídeo e a de cinema em qualidade e quantidade de pixels. Não estamos falando apenas de suporte, mas também de linguagem audiovisual.
“Já houve um tempo que o vídeo correspondia a uma prática significante marginal, às vezes até clandestina, tornando-se depois, com sua expansão e consolidação, um meio hegemônico, solidamente implantado no tecido social. O vídeo está hoje em todos os lugares, generalizado sob a designação mais ampla de audiovisual.” Essa fala de Arlindo Machado, e seus livros publicados sobre o assunto, preenchem bem algumas lacunas no mercado editorial que expõe a história do vídeo no Brasil e também falam um pouco sobre a documentação que compõem a trajetória da reflexão sobre o audiovisual no país e sua saída para um espaço generalizado.
Por estar cada vez mais consolidado em todos os lugares e possivelmente mais afastado da “margem” da produção audiovisual, não necessariamente o vídeo está se glamourizando, mas talvez se popularizando. Se existe uma “reação” do cinema ao vídeo, talvez por conta dessa manifestação popular, podemos dizer que sim. O cinema está se dirigindo para esta suposta “marginalização” para chegar à popularização. Logicamente ainda estamos assistindo muitas discussões teóricas e práticas em torno desse assunto que vem desde a década de 80.
De forma que, as discussões sobre o assunto ressaltam um certo fetiche pela legitimação social e institucional que o cinema carrega. Diferentemente da crise de legitimidade do vídeo no seu início, e que hoje pode ser encontrada no campo da internet. A “web-arte” pode ser um exemplo disso.
O site Youtube que ainda espera ser definido por teóricos e estudiosos, traz consigo sua própria definição de compartilhar vídeos que você mesmo faz. Além disso, o Youtube é um cinemateca gigantesca que qualquer um pode ver o programa da Chacrinha dos anos 80 e ao mesmo tempo assistir um trailer de um bom filme que ainda não passou nos cinemas.
É aterrorizante para alguns, você fazer uma pequena produção, qualquer coisa, qualquer bobagem, e não colocar no Youtube. Com certeza você será massacrado ao dizer que ainda não colocou no Youtube. Mas assim como no vídeo, dos anos 80, esse espaço de web também está sendo incorporado ao cinema de alguma forma, afinal trata-se de produções caseiras dividindo espaço com produções megalomaníacas. É de fato, bem interessante você produzir um vídeo caseiro de cinco minutos e dividir o mesmo site de busca com um grande diretor hollywoodiano. Já estamos num outro espaço quando falamos de vídeo “marginalizado”.
Independentemente da qualidade das produções, existem pontos em comum: o imediatismo e o perecível estão presentes em cada uma das milhares de postagens de vídeos na web. Será que essa quantidade assustadora de vídeos no Youtube que Arlindo Machado se referia quando falou que o vídeo está hoje em todos os lugares e absolutamente generalizado?
Não é de hoje que trechos de vídeos são inseridos nos filmes para dar um tom real a seqüência cinematográfica. Isso foi uma das marcas do pos-modernismo dos anos 80. Com essa interferência do vídeo no cinema podemos demonstrar um pouco do desgaste das narrativas clássicas do cinema. Mas ainda não podemos dar à câmera de vídeo a tarefa de desconstruir essa narrativa cinematográfica contemporânea.
Não sei se justifica, mas a ficção nos “curta-metragens” e o vídeo independente viveu um momento de explosão nos anos 80, ou ainda está vivendo. Ainda desconheço algum vídeo-ficção que alcançasse algum diferencial que pudesse separar definitivamente o vídeo-ficção do cinema-ficção. O filme “Cama de gato” de Alexandre Stockler pode ajudar o entendimento dessa interferência do vídeo na sétima arte.
O longa retrata a vida de adolescentes que acabam cometendo vários crimes dentro de um roteiro quase que absurdo. Nesse filme, gravado em câmera digital, e posteriormente transferido para película, tem como base a câmera na mão que procura a cena, assim como num vídeo caseiro. No final, há uma seqüência de entrevistas com adolescentes de classe média que acaba por dar todo o aspecto de realidade “bruta” que o filme quer passar o tempo todo. Mas isso só acontece com a intervenção do vídeo. Talvez, a grande metamorfose do vídeo-ficção só possa acontecer quando é confrontada com a ficção cinematográfica.
Nos anos 90, com a explosão do movimento do “Dogma” dinamarquês, os filmes como: Ondas do Destino e Os idiotas, de Lars von Trier ou Festa de Família, de Thomas Vinterberg utiliza técnicas do documentário. A câmera registra uma ficção cinematográfica que provoca o espectador por procurar muitas vezes a imagem como um cinegrafista amador. A forma documentária da câmera de vídeo assumida em alguns desses filmes busca uma renovação dos recursos ficcionais tradicionais do cinema e utiliza a “estética” do vídeo.
O curioso é que os filmes do “Dogma”, com suas imagens escuras, instáveis e muitas vezes “sujas” acabam por estar sendo aceitas e entendidas como o olho “amador”, não-adestrado, não-profissional. Mesmo assim são chamados de filmes.
Essa relação filme e vídeo na mesma produção, pode estar relacionado ao aumento gradual da produção audiovisual industrial com as imagens feitas em casa, registrando um aniversário familiar, ou um simples almoço em família. Afinal, quem está invadindo o espaço de quem nessa história? O vídeo que entra no espaço do cinema ou o cinema que invade o espaço do vídeo?
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